Percurso de um Mestre: VIVÊNCIAS NO MESTRADO EM EDUCAÇÃO DA UNB
Estudar um objeto por meio de investigação e chegar a conclusões é realizar ciência, algo essencial para que a sociedade prossiga com seu constante fluxo de aprendizado e troca de conhecimento, possibilitando descobertas capazes de resolver questões complexas, trazendo benefícios para a coletividade e moldando realidades futuras. Ao engajar-se no processo científico, não só se descobre aspectos essenciais para uma convivência comunitária saudável, como também se adquire conhecimentos valiosos e se constrói um nome.
Minha origem é de Minas Gerais, no município de Cabeceira Grande, onde nasci assistido por uma parteira, pois minha mãe não podia ir a um hospital, já que o mais próximo ficava muito longe. Dessa forma, vivi naquela cidade até os três anos de idade. Após este período, meus pais decidiram se mudar para o município de Cidade Ocidental em busca de melhores oportunidades e empregos. Localizada no estado de Goiás, nos arredores do Distrito Federal, foi lá que cresci, passei toda minha infância e cheguei à vida adulta.
Com pais analfabetos, devido à falta de oportunidades educacionais por terem que trabalhar na lavoura para sobreviver, fui encorajado desde pequeno a buscar estudo, pois eles enxergavam na educação o caminho para uma vida distinta da deles e para enfrentar os desafios impostos pela sociedade capitalista.
Inspirado por eles e por seus sonhos, busquei a educação. Meu desejo era conquistar meu espaço na sociedade que, até então, me era negado por ser uma criança periférica, filho de um homem negro e de uma mulher que enfrentou inúmeros desafios impostos pelo sistema machista. Com muita persistência, consegui concluir o ensino médio, apesar de estudar em uma escola localizada a seis quilômetros de distância da minha casa. Em diversas ocasiões eu caminhava até lá, em outras, sempre acompanhado de meus irmãos, pedia carona ao longo da estrada.
Depois disso, levei um longo tempo para começar minha graduação. Passei por diversas experiências: fui seminarista, saí do seminário, trabalhei como caixa de supermercado e atuei como agente administrativo. Nesse tempo, ascendi de cargo de agente administrativo para secretário, o que resultou em uma remuneração mais alta. Foi assim que dei início à minha jornada acadêmica. Para arcar com as mensalidades mensais, precisei negociar descontos e passar por situações difíceis a cada semestre. Abri mão de adquirir roupas ou sapatos nesse período, já que todo o meu dinheiro era direcionado ao transporte para a faculdade e às despesas acadêmicas.
Após concluir minha primeira graduação em letras decidi realizar duas especializações. Uma delas na área de língua portuguesa e a outra em educação especial e inclusiva. Em seguida, aproveitando a conveniência do sistema que possibilitava obter uma segunda graduação em menos tempo com o objetivo de capacitar mais professores, que eu fiz minha segunda graduação em pedagogia por meio de uma faculdade a distância. Enquanto isso, o mestrado parecia um objetivo distante demais, pois nas universidades particulares o custo do curso era impraticável para alguém como eu. A ideia de ingressar em uma universidade pública sequer me passava pela cabeça, parecia algo inatingível.
Naquela época, a Universidade de Brasília (UnB) era a instituição mais próxima, mas eu não conseguia sequer considerar a ideia de fazer um mestrado por lá. Talvez alcançasse essa meta em outro lugar, mas não lá, pois via aquela universidade como algo inatingível para alguém sem muitos recursos financeiros e com formação escolar inferior à dos estudantes dali. Por isso, nem passava pela minha cabeça cogitar essa possibilidade.
Somente em 2021 eu finalmente me senti motivado para buscar um mestrado. Inicialmente, me inscrevi em um processo seletivo na Universidade Estadual de Goiás (UEG), porém estava despreparado, sem saber como desenvolver um projeto de pesquisa para o mestrado. Busquei informações na internet, encontrei algumas orientações, mas acabei submetendo o projeto sem compreender totalmente como fazer. Isso resultou na minha aprovação, porém fiquei fora das vagas disponíveis.
Após isso, procurei por cursos e participei de eventos virtuais que orientavam sobre como elaborar um projeto de mestrado. Segui as instruções e, no começo de 2022, concorri à seleção do mestrado na UnB. A princípio, relutei em tentar, pois ainda tinha dúvidas sobre minha capacidade de entrar nessa universidade. No entanto, um raio de esperança me motivou a me inscrever e me concedeu a oportunidade de ingressar no mestrado. Fiquei emocionado, inicialmente incrédulo, mas era real: eu estava lá.
Optei pelo mestrado em educação por se adequar à minha situação atual. Sou professor concursado na cidade de Valparaíso de Goiás e acreditei que o mestrado em educação podia contribuir para o meu desenvolvimento profissional. Por isso, optei pela Faculdade de Educação, a fim de focar no meu objetivo de obter mais conhecimento, participar ativamente e aproveitar ao máximo essa experiência. A escolha se mostrou perfeita para o meu contexto.
Inicialmente, minha pesquisa abrangia apenas a investigação do pajubá, uma variante linguística desenvolvida por travestis durante a ditadura militar como meio de defesa contra a violência sofrida. O foco era explorar essa variação em um estudo educacional direcionado ao ensino fundamental, considerando que atualmente atuo nesse segmento da educação básica.
O objetivo era, por meio de um estudo sobre o pajubá e sua utilização no ambiente escolar, promover a divulgação da cultura LGBTQIA+. Desse modo, a linguagem, história e cultura representadas por travestis e mulheres transexuais seriam incorporadas em diferentes contextos, a fim de capacitar profissionais da área da educação com base nesse fundamento.
Isso aconteceu principalmente porque eu tinha interesse em me dedicar a um objeto que conectasse as áreas de letras e pedagogia, nas quais sou formado. Assim, ao estudar a variante pajubá, sua utilização na escola e as palavras específicas usadas, percebia que estava combinando ambos os campos de estudo para proporcionar visibilidade à comunidade LGBTQIA+, da qual me sinto parte por ser gay.
Minha infância foi marcada pela minha identidade gay evidente desde cedo. Fui uma criança viada. Infelizmente, o preconceito que sofri durante minha vida escolar por ser visto como gay foi constante. Fui alvo de situações homofóbicas, como ser empurrado contra paredes enquanto colegas simulavam me penetrar. No banheiro, enfrentei meninos que urinavam no meu pé e me insultavam com termos pejorativos. Durante o percurso até a sala de aula, era vítima de derrubadas e chutes por outros estudantes. Na rua, não era incomum ser perseguido por grupos de crianças jogando pedras e me ofendendo. Todas essas vivências, somadas à dificuldade em revelar minha orientação sexual publicamente, foram os fatores que me motivaram a abordar a temática LGBTQIA+ em minha pesquisa.
Foi dessa forma que, ao analisar as diversas formas de exclusão enfrentadas por cada um dos membros dentro do grupo, despertei interesse em destacar as experiências de transexuais e travestis. Isso se deve ao fato de que a atual sociedade demonstra uma maior resistência em relação às identidades transexuais do que em relação aos homossexuais cisgêneros. Segundo Gaspodini e Jesus (2020), é possível perceber diferentes aspectos da violência direcionada contra indivíduos não cisgêneros (como transexuais, travestis e pessoas transgênero) e/ou não cissexuais (como pessoas intersexo), devido à ideia de superioridade relacionada à cisgeneridade em contraposição à transexualidade. Assim sendo, é evidente que travestis e transexuais enfrentam uma forma adicional de exclusão. Com isso em mente, optei por focar minha pesquisa nesse grupo social. Nessa situação,
O heteropatriarcado ou cis-heteropatriarcado (de cis[generidade], hetero[ssexualidade] e patriarcado) é um sistema sociopolítico, no qual a heterossexualidade cisgênero masculina tem supremacia sobre as demais formas de identidade de gênero e sobre as outras orientações sexuais. (…) Cisgênero são pessoas cuja identidade de gênero é compatível com a identidade associada ao seu sexo biológico e/ou designação social. A maioria das pessoas é cisgênera. Por exemplo, uma criança que é identificada como uma menina no nascimento e se identifica como mulher durante a vida, é uma mulher cisgênero (TÁRSIA, 2020).
Com o início do mestrado, o foco mudou a partir da realização das disciplinas e da observação da realidade educacional nos anos iniciais do ensino fundamental. O estudo incorporou, as boas políticas públicas voltadas para mulheres transexuais e travestis, bem como as experiências educacionais desse grupo. Dessa maneira, o pajubá passou a não ser mais o único objeto de pesquisa. Além disso, o projeto passou a direcionar sua atenção para professoras e professores transexuais que residem em Valparaíso de Goiás, Distrito Federal e municípios próximos, buscando sensibilizar a comunidade e demonstrar que a escola também pertence às pessoas transgênero.
Diante disso, interessado em investigar as diversas interações estabelecidas por travestis e mulheres transexuais com o sistema educacional e as políticas públicas em vigor na cidade de Valparaíso de Goiás, em um panorama nacional, percebi a importância de estudar as necessidades educacionais dessa parte da população brasileira, bem como sua inclusão ou exclusão nas escolas. Essa decisão surgiu a partir de uma análise sobre políticas educacionais voltadas para travestis e mulheres trans e como são implementadas nas instituições de ensino para integrá-las ao ambiente educacional, utilizando conceitos relacionados à linguagem, sujeito, história e cultura em diversos cenários.
Ao longo de todo o percurso, enfrentei várias adversidades, porém contei com a ajuda de muitas pessoas, o que me permitiu estabelecer contato com quatro mulheres trans e também com três professoras trans e um professor trans. Após realizar entrevistas com esses participantes, alcancei os resultados desejados e pude dar início à escrita. Durante esse processo solitário, busquei alternativas criativas que resultaram numa dissertação enriquecedora.
No final do processo, ao apresentar a dissertação diante de uma banca de avaliadores, comecei a questionar as minhas habilidades, mesmo sabendo que havia realizado um trabalho excelente. Foi somente após o elogio da primeira examinadora à dissertação que passei a acreditar no meu potencial. A minha pesquisa foi aprovada e elogiada sem reservas pelas avaliadoras, as quais sugeriram a publicação do estudo e a elaboração de mais artigos. Elas ressaltaram a relevância do trabalho e indicaram que este deveria ser expandido dada sua importância.
Agora eu tenho meu título de mestre em educação. Trilhei caminhos que nem nos meus sonhos mais remotos pensaria percorrer um dia. Conquistei minha meta e é por esse motivo que me dirijo a você, leitor ou leitora: LGBTQIA+, negro(a), periférico(a), mulher, pessoa com deficiência, indígena… Eu alcancei, mesmo enfrentando tantos obstáculos que tentaram me deter. Por isso, vale a pena você também tentar. Compreendo que não é simples, pois senti na própria pele as dificuldades – foi essa a razão pela qual demorei muitos anos para iniciar meu mestrado após concluir a graduação.
Compreendo que a trilha para aqueles de nós inseridos em grupos sociais oprimidos não é idêntica à do jovem branco heterossexual. Não adianta simplesmente afirmar que, se eu consegui, você também pode conseguir, especialmente porque tive acesso a oportunidades inéditas até então, as quais culminaram na minha conquista do mestrado. Apesar disso, acredito que, caso nós que alcançamos este nível de educação, apoiarmos os nossos, orientá-los e os incentivar, possa ser possível assegurar a alguns desses sujeitos periféricos, negros e LGBTQIA+ o acesso aos programas de pós-graduação stricto sensu, já que a universidade pública pertence a nós!
Conforme mencionado em minha dissertação, na área designada à dedicação: “Avoa, mona, o mundo é teu palco! Arrasa, que o close é certo! (Felisbino, 2024).”
*por:Docimar JF