Especialista em defesa da mulher explica como processos de crimes sexuais podem mudar
A conduta de juízes e advogados em investigações e julgamentos sobre crimes sexuais pode estar prestes a sofrer uma importante mudança, que trará impactos significativos para vítimas e acusados. É que, no final de janeiro, a Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) um parecer em que pede que a vida íntima pregressa e o modo de viver da vítima de violência sexual não sejam considerados nesses tipos de processos. Não há prazo máximo para o julgamento do parecer, mas ele deve ser avaliado por toda a Corte.
A advogada especialista em defesa dos direitos das mulheres, mães e crianças Ana Carolina Fleury explica que o objetivo do pedido da AGU é combater uma prática que tem crescido exponencialmente nos últimos anos e é adotada como estratégia dos acusados. Trata-se do uso de estereótipos de gênero na tentativa de destruir a imagem da mulher, o que acaba resultando em decisões judiciais baseadas em noções pré-concebidas que a sociedade tem sobre características, comportamentos e papéis da mulher.
“Questionamentos sobre qual roupa a mulher usava no momento do crime sexual ou com quantos parceiros ela se relacionou durante toda a sua vida só reforçam pensamentos preconceituosos e revitimizam mulheres. Por isso, esse parecer busca combater a violência, especialmente a violência institucional, contra as mulheres, tornando o processo criminal menos agressivo para todas”, avalia Ana Carolina Fleury. A atitude de desqualificar as vítimas de crimes sexuais com base em sua vida íntima pregressa costuma gerar uma série de consequências.
Além do maior número de absolvições de acusados de estupro, são verificados danos psicológicos sofridos pelas vítimas ao serem desqualificadas e impactos até em outros processos judiciais. É isso o que aponta a advogada, que também é mestra em Educação pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e ministra vários cursos nas áreas de Direito Penal e Direito da Família, sempre com foco na Lei Maria da Penha e violência doméstica.
“A desqualificação de vítimas de violências diversas, especialmente as sexuais, constrange a mulher com o intuito de desestabilizar, envergonhar e amedrontar. Isso torna o caminho de um processo judicial um verdadeiro calvário, fomenta a culpabilização da mulher como justificativa para práticas criminosas e trata-se de uma conduta utilizada inclusive em outros processos, como os que envolvem a guarda dos filhos de casais separados, regras de convivência entre os mesmos e pensão alimentícia”, exemplifica.
Outras normas
O parecer protocolado pela AGU no STF leva em consideração que, apesar de a atual legislação abordar a proteção das mulheres em outras normas, tais como a Lei Maria da Penha e a Lei Mariana Ferrer, isso não foi suficiente para impedir o crescimento da quantidade de absolvições de acusados de abuso sexual nos últimos anos. A desqualificação das vítimas é tão frequente que, além de casos que ficaram nacionalmente famosos, há muitos outros por todo o Brasil.
A advogada Ana Carolina Fleury cita um caso recente atendido pelo escritório Póvoa, Schmidt & Fleury, onde ela atua. “Uma mulher que foi vítima de violência sexual e ficou extremamente traumatizada e abalada psicologicamente teve sua situação descrita por um perito como um ‘affair’ com o agressor”, conta. Fleury relata ainda que é muito comum nas audiências a realização de perguntas que atingem a honra das mulheres e trazem questões anteriores ao crime avaliado.
A especialista ressalta que tanto a Lei Maria da Penha como o próprio Código de Processo Penal determinam que a palavra da vítima tem relevância especial como prova quando envolve violências de gênero, mas que, em muitos casos, isso acaba não ocorrendo na prática. “Pedidos como o da AGU são importantes porque o Estado falha em cumprir as diretrizes básicas das leis, demonstrando a necessidade da utilização de outros meios para reafirmar aquilo que já existe, porém ainda não é efetivado”, analisa.
Proteção
A professora de Direito Penal e Direito da Família reforça que, mesmo o parecer da AGU sendo positivo, uma possível decisão do STF que seja favorável a ele ainda não é suficiente para garantir a proteção das vítimas de violência sexual durante julgamentos desse teor. Ela defende que é necessária a aplicação de outras medidas, dentre elas capacitação de servidores e advogados, efetivação do que já é previsto em leis e conscientização da população sobre tais questões.
A advogada pontua também que já há punições previstas para juízes, advogados e agentes públicos que fogem do que é previsto durante processos desse tipo, mas que isso está descrito em leis esparsas que carecem de reforço. “Se houver uma decisão do STF favorável ao parecer da AGU, é possível a elaboração de jurisprudências no sentido de reforçar que condutas com esse teor sejam tidas como inadmissíveis, auxiliando no combate institucional da violência de gênero”, complementa Ana Carolina Fleury.
Já no que diz respeito aos casos de crimes sexuais em si, a especialista diz ser necessário que o combate seja feito não só de maneira punitiva, mas também preventiva. Isso é especialmente relevante já que, somente em 2022, o Brasil registrou aumento de 49,7% nos casos de assédio sexual e 37% nos que tratam de importunação sexual, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “As leis estabelecem a coibição, tendo em vista o momento posterior ao da violência. Contudo, a prevenção, que é muitas vezes ignorada, atua justamente para não deixar que chegue neste ponto”, ressalta a advogada.
*Ananda Petineli